Quando o ser humano quer representar, gráfica ou fotograficamente, ou de qualquer forma visual, uma imagem de prazer e de qualidade de vida coloca a imagem de um veleiro. Seja em segundo plano, ao fundo ou como mera decoração, parece estar consolidado no subconsciente que um veleiro ajuda a representar o sonho que a imagem pretende mostrar. Preste atenção, um grande numero de imagens que mostram paisagens bonitas tem um veleiro para confirmá-la.
Assim, propagandas de hotéis luxuosos incluem um veleiro no cenário. Férias em lugares badalados ou exóticos mostram um veleiro, de preferência com alguém em biquíni bronzeando-se no convés. Mesmo quando o cliente alvo será um simples banhista de piscina ou de litoral, o veleiro é utilizado para vender férias relaxantes e situações paradisíacas.
Se uma reportagem promove uma praia ou uma cidade, ela destacará imagens de veleiros pela bahia, mesmo sabendo que, salvo algumas poucas dúzias de pessoas, os outros milhões da cidade não chegam nem perto desses veleiros.
Os pôsteres de agências de turismo apresentam veleiros nos destinos litorâneos, embora quase ninguém (no Brasil) de fato embarca num veleiro no destino escolhido, muito menos adquire um ou participa desta forma de vida.
Muitos quartos de crianças são decorados com veleiros, mas é raro que esta criança seja incentivada para a vela pelos pais. Veleiros nas paredes, num copo, veleirinhos no pijama, na roupa, uma imagem simpática bastante repetida como sinal decorativo, representando algo bom, feliz, algo que as pessoas querem emular pela sua qualidade de vida. No entanto, a empatia não passa da intenção para a prática. Já quando as imagens são de cavalos ou carros, ao invés de veleiros, é mais fácil que o individuo tome contato com eles. Parecem tratar-se de sonhos possíveis de serem realizados.
De fato, crianças acabam andando a cavalo de verdade ou se apaixonando por carros ou motos. Porém os veleiros ficam apenas como um símbolo inexperimentável fora dos bordados do pijama na infância. Talvez por ser uma atividade extremamente cara, os veleiros no Brasil são como a pedra preciosa. Todos lhe fazem referência…mas na hora H acabam usando uma bijuteria.
Seja em restaurantes, clipes de musica, propagandas de cartão de crédito, refrigerante ou perfume, um veleiro representa uma forma de exclusividade almejada pelo publico alvo. Representa estilo, paz, felicidade, classe, bom gosto, tranqüilidade, aventura, exotismo e muito mais. Na verdade, o veleiro enaltece qualquer produto ou pessoa agregando-lhe valor. Claro, se for sabão em pó ou extrato de tomate é melhor tomar como referência um parâmetro mais popular. Me refiro aqui as coisas que são colocadas no topo das expectativas de consumo e lazer social.
O curioso é que o Brasil é dono de um dos litorais mais extensos do planeta. A pouca intimidade do brasileiro com o iatismo deve-se obviamente ao seu baixo poder aquisitivo. Sendo uma atividade cara, a maioria da população fica excluída deste tipo de lazer, para os brasileiros, bastante exótico. Mas o Brasil é um país de fortes desigualdades de renda. Isso quer dizer que assim como existem os extremamente pobres, há os extremamente ricos. E estes, sabemos, não são poucos. Mesmo assim o descompasso de conhecimento e afinidade com a vela não guarda relação com o numero de pessoas que, financeiramente, teriam condições de se envolver com esta atividade.
Há muito suspeito que a vela é uma dessas coisas que tem um fundo cultural, sem relação proporcional ao seu valor financeiro. Uma dessas coisas em que o “novo rico”, apesar de poder, acaba não entrando, fazendo com que seu valor distinto e exclusivo continue impassível como sinal numero um de padrão de vida. As atividades aquáticas podem listar-se da mais simples e barata, até as mais sofisticadas e caras. Do simples banho à beira mar, as pranchas de surf, os snorkels de mergulho, o windsurf, o jet-ski, a canoagem, até as lanchas, veleiros e iates. Tem para todos os gostos e bolsos. Cada uma delas é fantástica e divertida. O numero de pessoas que tomam banho contam-se aos milhões, o numero dos que fazem surf são centenas de milhares, os que fazem canoagem ou wind, dezenas de milhares, os que se dedicam a lanchas ou ski, milhares, e os que optam por veleiros, …apenas algumas centenas.
A lancha a motor, ou iate, é o produto preferido daqueles que tem mais. A principio, parece lógico aceitar que o barco a motor, com luxo e velocidade, que requer pouco esforço e trabalho, seja preferido por quem tem dinheiro e só quer relaxar. Isto é o que acontece no Brasil. A relação entre o iate e o poder financeiro é diretamente proporcional. Os veleiros, ao contrário, não seguem esta mesma relação. Embora tenha um peso financeiro, a vela tem padrões irregulares entre seus praticantes.
Entretanto, no mundo, é fácil estabelecer uma relação diretamente proporcional entre a vela e o nível cultural das pessoas, se é que podemos alocar a esta algum tipo de medição. Assim como sabemos que o nível cultural de um país pode ser medido pelos livros per capita lidos por ano, podemos estabelecer uma relação semelhante entre os amantes do iatismo e o nível cultural de um determinado grupo social.
Ao igual que os livros, o Brasil mantém um nível baixíssimo de praticantes de iatismo. Perfeitamente condizente com seu nível cultural. Ao igual que os livros, presentes nas prateleiras e na vida das pessoas, mas pouco lidos, os veleiros estão presentes nas imagens idílicas do dia a dia do cidadão, desde a estampa na camiseta até o quadro na sala. Dai a de fato envolver-se com eles…pouco, como os livros. A comparação com outros países apenas confirma a regra.
Países até menos fortes economicamente que o Brasil, mesmo na América do Sul, mas com melhor histórico cultural, como Uruguay ou Argentina, tem uma concentração de veleiros muito maior. Como se explica que existam mais veleiros na Argentina, um país quase sem praias e com um sexto da população, do que no gigantesco Brasil? Da próxima vez que assistir a uma corrida de Formula 1, pela TV, em Mônaco, o centro da realeza européia, observe a concentração de veleiros nas águas. Mesmo na Inglaterra ou na Escandinávia, regiões frias e com litorais ásperos, a concentração de veleiros é significativa. No Mediterrâneo, não existe cidade costeira que não esteja abarrotada de veleiros. Nos Estados Unidos, é raro um núcleo familiar de litoral que não possua um. Em algumas cidades médias brasileiras podemos contar os veleiros com os dedos das mãos.
Pergunto-me às vezes quando será que os brasileiros vão despertar para a vela. Falta muito. Não será quando melhore a renda, pois pelo que sei hoje o aumento de renda só faz aumentar o numero de lanchas, não os veleiros. Se alguém estiver interessado não adianta procurar uma revista especializada em veleiros nas bancas. Neste grande Brasil não tem nenhuma. A Náutica, especializada em lanchas, dedica apenas um pequeno espaço de dez por cento aos barcos a vela. Tampouco existem fabricantes em série de veleiros no nosso imenso Brasil. Os poucos existentes são de projetos importados ou nacionais de qualidade abaixo das expectativas. Assim é o Brasil. Pode-se conhecer sobre seu povo simplesmente analisando uma atividade de lazer como o iatismo.
Aos poucos o aprendizado vem e haverá um despertar na atividade. Não será mais um estilo de vida só de loiros, estrangeiros, ou brasileiros com sobrenomes complicados que moraram ou se desenvolveram fora. Será mais uma paixão nacional. Tudo chega a seu tempo. Por enquanto, o carro zero, a moto, a casa de praia ou o shopping ainda são prioridades na boa classe média. Como bom darwiniano que sou, acredito na evolução. Afinal, quem lembra do Brasil de 30 anos atrás, quando cão de raça era um pequinês, vejam como melhorou a imaginação das pessoas, hoje até já pronunciam nomes como Schnauzers e Rotweillers. Quem não se lembra dos tempos do Brasil de carros sem ar condicionado. Ninguém se incomodava muito com isso, apesar do clima tropical, ao ponto que até hoje as fábricas insistem em oferecer o ar como “opcional”, ao contrário de qualquer outro país do mundo.
Ahhhhh…, o consumo sedutor. Certas coisas, como a internet ou os celulares, só surgem quando a tecnologia as viabiliza. Outras, sempre existiram, mas só surgem com a evolução social e cultural das pessoas. Não chegue a pensar que meu sarcasmo snob desta abordagem me inclua em alguma categoria particular. Sou brasileiro. Não tenho veleiro. Ainda. Mas isto não me impede de escrever estas linhas, fúteis ou inúteis, provocativas, cortantes como as esteiras de espuma deixadas por um veleiro em direção a um horizonte melhor.